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A Neuropsicologia e o comportamento desviante

marcadas que os seus empregadores recusaram-se a reempregá-lo. Gage apresentava-se então como um trabalhador irregular e caprichoso, demonstrando pouca deferência e respeito pelos seus companheiros. Parecia demonstrar impaciência e obstinação, embora por vezes se apresentasse indeciso, sendo incapaz de focar a atenção em um qualquer plano de acção. Os seus amigos descreveram-no como “Já não é o Gage”. Várias foram as mudanças em Gage (incapacidade de manter uma actividade profissional fixa, incapacidade de planificação do futuro, comportamento irresponsável, etc.) até ao seu falecimento em 21 de Maio de 1860. Apesar de apresentada de forma muito resumida, a trágica história de Phineas Gage permite-nos reflectir acerca das alterações marcadas na sua personalidade, e na forma como um acontecimento não escolhido (a explosão de uma carga explosiva e subseqüente trespassamento cefálico por uma barra de ferro) pode marcar a experiência fenomenológica individual.

Alguém que tivesse privado com Gage antes do acidente, teria provavelmente alguma dificuldade em classificá-lo: “Uma pessoa socialmente boa e trabalhadora, que teve um acidente… e que se transformou num indivíduo errático, irresponsável, com desprezo pelos valores sociais e morais, e incapaz de realizar algo de útil e duradouro pela sociedade”; “Um indivíduo errático, irresponsável, com desprezo pelos valores sociais e morais, e incapaz de realizar algo de útil e duradouro pela sociedade… que já foi uma pessoa socialmente boa e trabalhadora… antes de um fatídico acidente”; ou poderia ainda descrevê-lo simplesmente como “Alguém que já não é o mesmo Gage que conheci!”. Todavia, alguém que apenas tivesse conhecido Phineas Gage após o acidente, e que não fosse alertado para o ocorrido possivelmente descreveria Gage como um indivíduo errático, irresponsável, com desprezo pelos valores sociais e morais, e incapaz de realizar algo de útil e duradouro pela sociedade.

E as pessoas que nos rodeiam, e que nos são apresentadas como tendo sido autoras de actos socialmente reprováveis? Terão estado sujeitas a factores biológicos, sociais, psicológicos e ambientais que de certa forma possam ter contribuído para as suas acções? A compreensão destes aspectos é talvez uma das grandes tarefas da avaliação pericial.

António Damásio (1979), sumariza assim as principais consequências encontradas a seguir a lesão dos lobos frontais em humanos:

‣Tendência para a desvalorização dos acontecimentos a que o próprio indivíduo está sujeito, embora não negue o estado de doença;

‣Resposta emocional inadequada;

‣A sua história tem muitas vezes que ser obtida por informadores, uma vez que a informação dada por si não pareça digna de confiança;

‣Muitas vezes os sujeitos apresentam-se distraídos, parecendo não estar a interagir com o meio (parecem não estar a ouvir o que se lhe está a dizer) ou apresentam falta de espontaneidade;

‣A sua capacidade de comunicar e se deslocar pode estar diminuída por fenómenos como a perseveração (uma tendência para persistir na execução de um acto, muito para além do tempo em que esse mesmo acto deixou de ser necessário);

‣Muitas vezes ocorrem alterações emocionais imprevisíveis e geralmente inadequadas à situação.

Não é forçoso que todos estes sintomas apareçam conjuntamente e é imperioso que se avalie o quadro fenomenológico do sujeito em causa, mais do que tentar enquadrá-lo numa grelha pré-concebida (voltaremos a este assunto mais adiante, quando abordarmos a exploração dos síndromes específicos).

A simulação na avaliação forense

Segundo uma lenda antiga um burro era colocado numa tenda escura, tendo sido a sua cauda ligeiramente coberta com fuligem. Cada possível suspeito, de estar ou não a dizer a verdade acerca de um determinado facto, recebia a instrução de entrar na tenda e puxar a cauda do burro. Entretanto, era-lhes dito que o burro só zurraria se o homem a puxar a sua cauda estivesse a mentir. O homem que nada a tivesse a temer, obviamente puxaria a cauda e sairia da tenda escura com as mãos sujas de fuligem (não se podendo aperceber de tal facto até encontrar novamente a luz fora da tenda). Por sua vez, aquele que estivesse a mentir, receando que o burro de facto zurrasse ao puxão da cauda, não puxaria a mesma cauda, e sairia da tenda com as mãos limpas.

Da China antiga chega-nos ainda uma técnica interessante. Quando os sujeitos eram interrogados eram-lhes postos grãos secos de arroz em baixo da língua, com a instrução de mantê-los lá até ao fim do interrogatório, findo o qual, deveriam cuspir o arroz para as suas próprias mãos. Aos sujeitos que apresentassem um arroz humedecido pela saliva era-lhes poupada a vida. Todavia, àqueles que cuspissem o arroz seco era-lhes literalmente cortada a cabeça. Esta técnica deitava uso do conhecimento de que a boca fica seca quando um indivíduo está sujeito a situações estressantes.

Ambas as passagens são-nos apresentadas por Damme (2001), num interessante artigo Forensic Criminology and Psychophysiology: truth verification tools, with a special study of Truster Pro. Ester autor refere que ao longo do tempo, a humanidade tem tentado desenvolver instrumentos e estratégias para separar a mentira da verdade.

Ora, quanto ao campo da neuropsicologia, qual o papel que a não-verdade desempenha? Que métodos poderão ser utilizados para avaliar a existência de simulação? Será plausível instalar tendas escuras nos tribunais ou mesmo entregar um punhado de arroz a cada suspeito enquanto este está a responder a um interrogatório ou a ser sujeito a avaliação neuropsicológica?

Fernández-Guinea (2001) recorda-nos que uma das críticas apontadas à Neuropsicologia Forense é precisamente a dificuldade que esta disciplina encontra para detectar aqueles casos em que o sujeito simula deliberadamente dano físico e/ou psicológico, com a intenção de alcançar ganhos secundários. Também por estas razões, a psicologia tem-se preocupado em conferir um aspecto o mais objectivo e coerente possível aos processos avaliativos que se propõe encetar. Este aspecto ganha especial relevância quando o que está em causa é a avaliação de uma eventual afecção psíquica no âmbito da avaliação pericial. Não obstante este aspecto, dentro do vasto campo da Avaliação Psicológica a neuropsicologia alcança um lugar de destaque na objectividade dos fenómenos avaliados. Lopriore (1999) psicólogo italiano com vasta experiência na avaliação pericial defende mesmo que “em comparação com a avaliação da personalidade e de testes psicológicos no geral, a avaliação neuropsicológica e cognitiva alcança uma grande objectividade, de tal forma que neste